segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Maria Valéria Rezende, homenageada da 5ª Flibo

foto: Roberto Menezes

Quando menina em Santos, Maria Valéria Rezende assistia, da sala da avó Georgina Aranha de Rezende, a movimentação cultural da cidade. Pagu era figurinha fácil na casa da sobrinha de Vicente de Carvalho. Eram os anos 1940, 1950. Passa um tempo e chega a hora da garota fazer parte desse agito e lá está ela carregando fios nos bastidores da polêmica peça Barrela, de Plínio Marcos, ou no coro do Madrigal Ars Viva durante a primeira apresentação de Beba Coca-Cola, feita por Gilberto Mendes a partir do poema de Décio Pignatari.

Fazia isso tudo enquanto participava da Juventude Estudantil Católica. E por fazer parte da liderança religiosa, ganhou o mundo cedo, na época de entrar na faculdade – depois se formaria em pedagogia pela PUC, língua e literatura francesa pela Universidade de Nancy e faria mestrado em sociologia.

Viu Che Guevara. Bateu longos papos com Fidel Castro. Tomou café da manhã com Gabriel García Márquez. Escondeu alguns militantes durante a ditadura, arrumou emprego para outros e passaporte falso para os que corriam mais risco. Foi interrogada, exilada. Na volta, com uma mochila nas costas e transitando por lugares remotos do País, ensinou camponeses, sindicalistas e presos a ler e escrever.

Rodou o globo três vezes até sentar pouso em João Pessoa, onde vive hoje e onde escreve seus livros – sempre a partir do muito que viu e viveu, e por isso o contexto é importante.

A escritora e freira Maria Valéria Rezende lança Quarenta Dias (Alfaguara), romance que acompanha o drama de uma mulher de cerca de 60 anos que se vê obrigada a abrir mão de sua vida para ajudar a filha, que mora do outro lado do país, a ser mãe. 

Confira alguns trechos da obra.





“E aqui estou vomitando nestas páginas amareladas os primeiros garranchos com que vou enchê-las até botar tudo para fora e esconjurar toda essa gente que tomou conta de mim e grita e anda para lá e para cá e chora e xinga e gargalha e geme e mija e sorri e caga e fede e arenga e escarra e morre e ressuscita sem parar.
Ave-Maria! Quanto nome feio acabei de escrever!, eu que nunca fui disso! Nem me importa, ninguém vai ler essa” (...)
“Ninguém vai ler o que escrevo, mas escrevo. É a única maneira de voltar inteiramente, se é que ainda dá para fazer meia-volta-volver.” (...) “Já enchi páginas e não achei o começo. Deixe de embromar, Alice, confesse que o broto
desse espinheiro que cresceu dentro de você foi a revelação do egoísmo da sua filha.” (...)
“Em resumo, o certo para ela é que eu, afinal, já tinha chegado ao fim da minha vida própria, agora o que me restava era reduzir-me a avó.
Eu, de cara, disse não, eu não queria me mudar pra Porto Alegre, aquele frio danado! nem era preciso, que hoje a moda é todo mundo botar a pobre da criança presa numa creche assim que desmama, eu não havia de largar pra trás tudo o que custei tanto a conquistar, meus velhos amigos, os alunos que se tornavam novos amigos, a praia, o Atlântico todinho na minha frente, planos de viagens e atividades que tinha tido que adiar até então, mas ainda em tempo de realizar, a vida que eu considerava feliz, apesar das cicatrizes.
Foi pelas cicatrizes que ela me pegou e não me largou mais, chantageando: por minha culpa ela tinha crescido praticamente sozinha, eu me ausentava, só pensando em trabalhar pra esquecer a tragédia da minha juventude, ela não tinha culpa de nada, fui eu que nem tive coragem de recomeçar a vida, de lhe dar um novo pai, que ela, a bem-dizer, nunca teve nenhum, não lhe dei irmãos, eu nem imaginava como doía ver Umberto, eufórico, assando churrasco com sua enorme família gaúcha, o bando de irmãos que ele tinha, os sobrinhos, os pais, um casal feliz e realizado, recebendo todos de braços abertos, inclusive a ela, mas não era a mesma coisa, não eram do mesmo sangue (...)”

Fonte: O Estado de São Paulo, maio de 2014 | Maria Fernanda Rodrigues

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